Cuca, a cultura do estupro e os movimentos espíritas
Autoria de Gabriel Lopes Garcia
A semana passada foi marcada no futebol brasileiro por intensa cobertura e debate sobre os protestos da torcida do Corinthians contra a contratação do técnico Cuca. O motivo da veemente recusa dos torcedores se deve ao reavivamento do escândalo de Berna, na Suíça, em 1987.
Naquela ocasião, o time do Grêmio fazia uma excursão no exterior. Cuca e mais três jogadores do time mantiveram relações sexuais sem consentimento com uma menina de 13 anos em um hotel. Todos foram julgados e condenados criminalmente na justiça suíça, depois do devido processo legal.
Embora ele ainda hoje negue as acusações, abundam as evidências do crime: ele confessou na coletiva do Corinthians que estava presente no quarto no momento do abuso e, além disso, a Diretora do Arquivo de Berna mostrou¹ a página do processo que confirma que houve ato sexual com menor e o laudo que confirmou que havia sêmen de Cuca no corpo da vítima.
Não bastasse tudo isso, muita gente ainda pede por mais provas, duvida da vítima e releva o crime sexual cometido por Cuca. Isso ficou evidente nas falas do presidente do Corinthians e de alguns jogadores. O episódio chamou ainda mais atenção pelo fato de ser um clube que já fez uma campanha intitulada “Respeita as minas”.
Aí é que entra a cultura do estupro
Esse tom machista foi típico da mídia lá na década de 1980 na cobertura deste caso. Muitas vezes o comportamento dos jogadores foi suavizado como um “deslize” ou uma “irresponsabilidade”, e ao mesmo tempo questionavam a veracidade do ocorrido, culpabilizando a vítima. Atualmente, 36 anos depois, a maior parte dos veículos midiáticos adotou uma cobertura mais crítica, em parte refletindo as mudanças da sociedade brasileira nos últimos tempos.
A cultura do estupro se manifesta na prática e na incitação à violência sexual contra mulheres. No Brasil, conforme se depreende do alto número de denúncias e de casos subnotificados, este crime está incorporado intimamente na cultura nacional. Esclarecendo o conceito²:
Sendo assim ‘cultura do estupro’ é a expressão usada para descrever uma série de comportamentos individuais e/ou coletivos, socialmente aceitáveis, mas que perpetuam a ideia de que a vítima é a aquela que induz o comportamento do agressor. No caso de violência contra a mulher, ela é a própria culpada pelos assédios ou demais violências sofridas, seja por conta de suas roupas, por suas atitudes, ou por estar em locais de diversão e lazer durante a madrugada. Também faz parte da ‘cultura do estupro’, normalizar comportamentos que diminuem a mulher em relação ao homem e incentivar o silêncio através da descredibilização da vítima.
Eu estou convencido de que precisamos discutir essa questão no meio espírita brasileiro, que também partilha dos problemas sociais do país. É preciso superar os tabus e discutir francamente estas questões nas instituições espíritas, de modo a enfrentar o problema, (re)educando as pessoas, prevenindo crimes e orientando as vítimas na busca de justiça e proteção.
Alguns casos mais chocantes, como o do médium João de Deus, são frutos desse caldo cultural de idolatria mediúnica no qual grassam abusadores sexuais. Nos últimos anos o IDE-JF tem produzido muitas discussões a este respeito. Nas referências ao final do texto se encontra uma lista de textos e vídeos já produzidos sobre o assunto. Por exemplo, a questão específica do machismo no Espiritismo:
Movimentos espíritas problemáticos
Reafirmando e desenvolvendo o que foi escrito acima, é preciso uma observação crítica dos discursos dos espiritistas e dos Espíritos, e das práticas das instituições espíritas no Brasil. O pacto de relativização e culpabilização da vítima, típicas da cultura do estupro, acontece em nosso meio, disfarçadas de argumentos doutrinários.
O obstáculo inicial é o silenciamento. O movimento espírita hegemônico federativo institucionalizado detesta abordar qualquer assunto mais problemático da sociedade que lhes retire do vale encantado da regeneração. Neste paraíso de bolha, marginalizam pessoas que levantam o véu deste problema, impedem as discussões do tema ou o assumem de maneira superficial na tentativa de esvaziar a demanda.
Uma vez que não é falado, é como se não existisse. E ficam os homens livres para continuar agindo fraternalmente com seu machismo agressivo nas atividades espíritas. São vários os relatos anônimos de mulheres discriminadas e que, a exemplo de outros ambientes, têm receio de denunciar por conta das represálias e das ameaças.
No campo ideológico, o ataque acontece em duas frentes que se completam na missão de propagar e fortalecer a cultura do estupro no meio espírita: as considerações sobre a natureza da mulher e a justificação reencarnatória do estupro. Ambos tópicos são bem articulados e reforçados, conforme se vê nas palestras, nos livros e nos vídeos produzidos pelas pessoas que advogam essa mentalidade.
Discursos e práticas espíritas
Na versão espírita da cultura do estupro é importante submeter a mulher ao talante da autoridade masculina. Como o apelo explícito à violência seria rechaçado, apela-se para uma construção ardilosa. A idealização espírita da mulher consiste em lhe atribuir características de elevação espiritual, como se ela fosse naturalmente dotada de qualidades como feminilidade, docilidade e capacidade de suportar heroicamente as agressões masculinas, pois a renúncia é sua virtude mais valorizada.
Segundo essa ideologia, a mulher tem aptidão natural para cuidar dos filhos e dos serviços domésticos, é naturalmente inclinada a perdoar as hostilidades e a se sacrificar em prol da felicidade do homem. Tudo suporta e compreende. É a parceria perfeita pois se submete docilmente aos desejos do homem, pois ela é diferenciada espiritualmente. É um subterfúgio conceitual para justificar sua posição submissa: torturando os conceitos doutrinários para a perpetuação e aceitação da cultura do estupro no ambiente espírita.
Esse discurso gera uma padrão de comportamento esperado da mulher idealizada espírita, que deve ser recatada, dedicada à família e ao centro, sem muitas ambições na vida para não perturbar os papéis naturais de gênero. Várias celebridades espíritas — médiuns, oradores e Espíritos — atacam o feminismo, acusando-o de ser um veneno para a mulher, que desestabiliza o lar. É uma narrativa violenta, fantasiada de Espiritismo, uma estratégia para manter a posição de privilégio masculina e para justificar a aceitação passiva das mulheres das violências cometidas contra ela.
O aspecto mais grave da relativização espírita deste crime sexual é o discurso que “explica” (?!) o estupro segundo uma suposta afinidade fluídica entre a vítima e o estuprador. Segundo essa opinião, o criminoso não escolhe a vítima ao acaso, mas escolhe a mulher com a qual teria uma suposta ligação espiritual, de passada reencarnação. Eu escutei isso várias vezes em estudos e palestras, inclusive da parte de mulheres. Isso é sintomático do quão profunda a cultura do estupro está enraizada no meio espírita brasileiro. Isso explicaria o evento de maneira sórdida: a culpa tem que ser da mulher, nem que tenha de se apelar para outra reencarnação.
É logicamente falho e eticamente absurdo. Mais uma vez, o que acontece é culpabilizar a vítima pelo estupro e, neste caso, inventar uma interpretação perversa da Lei moral de causa e efeito para relativizar o crime. Até condena-se o estupro (pois senão daria uma ideia explícita de defesa), mas coloca-se um porém: haveria uma suposta ligação, então tinha de acontecer. É o abuso da filosofia espírita, distorcida para relativizar um crime hediondo. É o escárnio com a mulher estuprada, que além do sofrimento atroz decorrente do estupro, é violentada no sentimento pelo abuso do Espiritismo imputando-lhe a culpa pelo que aconteceu.
E disso se emenda no fundamentalismo religioso de perseguir mulheres na pauta do aborto, em conluio com fanáticos extremistas de outras denominações. Há uma obsessão moralista na pauta do aborto, que mobiliza pessoas e instituições espíritas, ignorando sumariamente as mulheres. E disso também deriva a interpretação leviana de que temos apenas os filhos que foram planejados para a reencarnação. Assim, não precisamos usar qualquer método contraceptivo, afinal só haverá gravidez se tiver um Espírito programado aguardando em alguma colônia espiritual o momento de retornar à carne. É claro que usualmente este discurso sai da boca dos homens brancos velhos (caricatura comum nos centros) que não gestam a prole e nem têm a vida bastante modificada por isso.
Perspectivas de mudança
Nós os espíritas precisamos acompanhar as mudanças sociais no tratamento desta grave questão da cultura do estupro, sair da bolha de colônias espirituais fantasiosas e participar ativamente das discussões para transformar essa realidade. É dever ético, cívico, espiritual. É preciso nos engajarmos nas ações sociais mais amplas de combate à violência contra a mulher. E fixar bem nos estudos a causa única do estupro: o estuprador, que usa do seu livre-arbítrio para perpetrar o crime sexual.
Sabemos que é difícil para a vítima denunciar o crime, é algo extremamente doloroso. Ameaças, questionamentos e culpabilização são algumas coisas que essas mulheres passam após a denúncia. Muitas pensam em desistir, inclusive do esporte, no caso específico de que partimos para esta discussão. Jogadoras de futebol, ginastas dentre outras pensam em abandonar a carreira.
Cuca durou apenas seis dias no cargo do time paulista. Isso só foi possível devido à pressão das mulheres que não silenciam frente aos casos de violência e questionam a cultura do estupro e da impunidade em nossa sociedade. Compete aos homens participar dessa causa, melhorando comportamentos, denunciando outros criminosos (sem brotheragem para os proteger) e acolhendo a pauta legítima das mulheres.
Aos espíritas, que aprendemos que não existe alma fêmea nem alma macho, pois os sexos dependem do corpo material, sabemos que reencarnamos em ambos os sexos biológicos, a depender das necessidades de progresso espiritual. É o fundamento natural do feminismo, da igualdade dos direitos entre mulheres e homens e do combate à cultura do estupro.
Referências
1
2
Jornal O IDEAL
Edição 281 — março 2020
Editorial “Feminismo é bandeira de todos!”
Texto “Igualdade entre mulher e homem: a lei do progresso”
Edição 289 — novembro 2020
Texto “Estupro: combater o crime e (re)educar as pessoas”
Edição 298 — agosto 2021
Texto “Espiritismo como rede de apoio no combate à violência contra a mulher”
Edição 299 — setembro 2021
Editorial “Talibã e direitos da mulher”
Edição 309 — julho 2022
Depoimentos “As recorrentes violências contra a mulher”
Vídeos no canal do IDE-JF no YouTube
Live “Violência contra a mulher”
https://youtube.com/live/N7QMlXKTS2E?feature=share
Live “João de Deus e o abuso da mediunidade”